sexta-feira, 22 de julho de 2016

Roger Waters, o socialista, vs David Gilmour, o burguês

Fofoca-se que, na definição do setlist do show histórico que reuniria no mesmo palco, após duas décadas separados, os integrantes da formação canônica do Pink Floyd, Roger Waters quis que a banda tocasse o clássico "Another brick in the wall". David Gilmour vetou, cônscio do tremendo desrespeito: como cantar "We don't need no education" ("Não, nós não precisamos de educação") no Live 8 (2005), um ato humanitário grandioso em favor da África, onde o baixíssimo índice de escolaridade era (e continua sendo) apenas um dos números indigestos do Continente?

Desde a juventude, Roger Waters é metido a socialista. Ainda hoje a pose não parece ter mudado em nada, à revelia do salto - muitíssimo mercadológico - de riqueza do músico britânico. No período em que assumiu a liderança do Pink Floyd, com o afastamento de Syd Barrett, o baixista gostava de criticar Gilmour, acusando-o de só se interessar em criar seus magníficos solos de guitarra e pegar mulher. O guitarrista, na repreensão do cérebro inquestionável da banda, não se entusiasmava com o lado conceitual, ideológico, de crítica social tão nítido nos álbuns Animals (1977), The wall (1979), The final cut (1983) e outros. Em vez disso, preferia valorizar... a música.

A propósito, em um de seus rasgos antológicos de ironia tão cruel quanto sensata, Friedrich Nietzsche questionou compositores como Richard Wagner que almejavam, a todo custo, convencer de que eram mais do que compositores, deixando entrever nessa atitude o quão em pouca ou má conta teriam a música somente música.

Mas também é estranho o socialismo de Roger Waters, socialismo que, de qualquer forma, não deixa de ser o espécime de uma espécie. A narrativa da genial ópera-rock The wall, por exemplo, de sua quase inteira autoria, alegoriza (não só isto, claro) o solipsismo dele mesmo, sua confessa dificuldade em interagir no palco com o público, a ponto de, diante dos aplausos mais estrepitosos a Eric Clapton do que ao já ex-Pink Floyd, não ter se contido em inveja: "Ah, sim... o grande Eric Clapton."

A lista desses gestos sugerem (não sugerem?) que o socialismo de Waters, se implementado, nos levaria ao fascismo que o próprio baixista critica em The wall, valendo ressaltar que fascistas não foram apenas Mussolini, Hitler, Franco e Salazar, com seus governos de direita, mas também Stalin e Fidel, com suas ditaduras de esquerda. Que outra interpretação hipotética teríamos de tamanha insensibilidade, rejeição e intolerância frente ao outro - da miséria do outro ao sucesso do outro?

No fim das contas, o burguesinho e pegador David Gilmour, a nódoa capitalista do Pink Floyd, sempre foi o mais atento aos direitos autorais devidos a Syd Barrett, guitarrista destruído pelas drogas a quem substituiu na banda, e muito mais sensível às mazelas dos africanos.

sábado, 9 de julho de 2016

Pela norma padrão e culta da "Inculta e Bela"

Logo no primeiro dia do primeiro semestre letivo do curso de Letras na UFMG, em 1998, a professora da disciplina Língua Portuguesa I exterminou, sem dó nem piedade, nossas esperanças de calouros burros de que ali, ao longo daqueles quatro anos, finalmente, aprenderíamos gramática. De jeito nenhum, pimpolhos das gírias. A proposta na faculdade seria antes de problematizar, questionar a chamada pelos linguistas gramática tradicional ou gramática normativa. Além do mais, que esquecêssemos as noções de "falar certo" e "falar errado" em matéria de qualquer idioma, pois a rigor o falante nativo de uma língua jamais erra ao nela se expressar; porque, se não obedece à norma padrão ou culta, nunca desrespeita a gramática internalizada; porque toda língua é dinâmica e concretizada em variantes históricas, regionais, sociais, etárias; porque, em suma, o considerado "correto" advém de uma imposição da classe dominante.

Na área da Linguística, então, tomamos conhecimento da luta de Marcos Bagno em se fazer reconhecer a legitimidade da diversidade linguística no Brasil, contra os preconceitos que inferiorizavam pronúncias e sintaxes desviantes da norma padrão (à qual, na fala, ninguém acataria 100%). Aprendemos a reverenciar a prata da casa, o eminente professor Mário Alberto Perini, autor dos livros Para uma nova gramática do português e A gramática gerativa, quem, naquele período, se aposentaria. Ouvimos o professor Luiz Carlos de Assis Rocha, carinhosamente mais conhecido na FALE (a Faculdade de Letras da Federal de Minas) como Rochinha, defender seu projeto GNM - a Gramática Nunca Mais. E fomos incentivados a fazer cara feia ao ouvirmos as lições de Pasquale Cipro Neto, professor que se celebrizou por apresentar o programa Nossa língua portuguesa, exibido pela TV Cultura.

Esta semana e especialmente ontem, essas lembranças ressurgiram, despertando em mim bons sentimentos nostálgicos. Direcionei toda minha formação acadêmica para a Literatura. E hoje, há mais de dez anos, sou professor universitário de Literatura. Mas tive a feliz oportunidade de integrar a banca avaliadora de TCC's (os famosos Trabalhos de Conclusão de Curso) que tinham por tema de pesquisa a diversidade linguística e por propósito defender que as variantes faladas pelos alunos assumam patamar de equivalência à língua padrão, à norma culta nas escolas de ensino básico.

Concordei que a escola tem por dever o combate ao preconceito linguístico. E não só ao linguístico, como também ao preconceito étnico, religioso, partidário, de gênero, enfim a todos os preconceitos, embora eu tenha consciência de que a tarefa de nos libertarmos disso, totalmente, seja por enquanto uma utopia. Concordei que aos professores de língua portuguesa do ensino fundamental e médio cabe informar, em sala de aula, que as línguas são dinâmicas, e assim se modificam no tempo, no espaço e no contexto, de modo que há maneiras de se falar adequadas numa certa circunstância que se tornam inadequadas em outra; que pessoas de lugares distintos falam de formas distintas, e nenhuma é, em si, melhor ou mais bonita do que a outra; que não é educado menosprezar ou ridicularizar ninguém por falar isso ou aquilo (vale sublinhar que a língua padrão não constitui o único parâmetro que pode estabelecer uma manifestação de preconceito linguístico: já fui alvo da chacota de colegas do antigo segundo grau por eu não estar por dentro do significado de "feudal", na acepção específica do grupo: "véi, isso é muito feudal").

Porém, não podia concordar que a escola devesse ensinar, igualmente, a norma padrão e as variantes. Para quê, se o aluno já teria aprendido suas variantes no convívio com os familiares, com os amigos, com os colegas, no convívio amplo com a sociedade? Gastar dinheiro público para ensinar o "Pai Nosso" ao Papa? Não: invistam-se dinheiro e tempo, na escola, em ensinar e aprender a complexidade sintática e a riqueza lexical da língua culta, a única que prepara o aluno para o exercício pleno da cidadania (compreender um contrato que eventualmente assinará, interpretar a Constituição Federal, Estadual, por exemplo) e prepara para ingresso no ensino superior (ler um tratado de cardiologia, um livro de Kant, um manual de contabilidade etc).

"É que a língua culta é uma imposição da classe dominante!" E as normas de trânsito - resultam da decisão de quem? Qual plebiscito decidiu que o vermelho do semáforo significa "pare" e o verde, "siga"? Mas, afinal (1), a que classe pertenceram (e pertencem) autores de descobertas na Matemática, na Biologia, na Física, na Química, na Geografia...? Que ranço tolo é esse que, nas suas últimas consequências, nos levaria a rejeitar conhecimentos, vacinas, remédios, tecnologias, por as rotularmos como "imposição da classe dominante"? E, afinal (2), o que exatamente define a classe dominante? Os ricos? Rico é quem tem renda a partir de quantos reais, dólares, euros? Silvio Santos interferiria nas regras gramaticais ("Má oêee"). Os políticos? Figueiredo, Fernando Collor, Pinduca, Tiririca determinariam qual a variante de maior prestígio ("Florentina, Florentina...").

"É que os alunos pobres têm mais dificuldade de aprender a norma padrão!" Quem decreta algo desse teor está atestando que a pobreza vem acompanhada, necessariamente, da burrice. Isso mesmo. Não fosse assim, como imaginarmos que um aluno, considerando-se para ele, na prática, inacessível um registro de sua própria língua nativa, consiga aprender um idioma estrangeiro? Que esse aluno vá ingressar no ensino superior, caso não se traduzam para sua respectiva variante toda a bibliografia do curso?

A culpa não é da língua culta, da norma padrão. A culpa é das nossas graves desigualdades sociais, que as políticas públicas não alcançam resolver de fato, condição piorada pelo que Sergio Paulo Rouanet, em As razões do iluminismo (livro de 1987), denomina "o novo irracionalismo brasileiro", três decênios depois ainda imperante, firme e forte. A culpa é do fracasso catastrófico do nosso sistema educacional, perante o qual toda a boa vontade e sabedoria dos pedagogos e docentes discípulos de Paulo Freire pregam tão linda quanto impotentemente. Segundo muitos destes, a culpa seria do capitalismo, verificação que finge ignorar que os melhores modelos atuais de educação nós os encontramos na Finlândia e no Canadá, dois países super-anticapitalistas, não é verdade? A culpa é das estrelas que fazem brilhar o discurso inimigo da alta cultura, na qual, segundo Rouanet, "lateja a esperança de um futuro além das classes, e é nela, quer se queira ou não, que estão contidas as grades de análise e as categorias teóricas que permitem articular uma prática libertadora". (As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p.130)

Soa pernóstico, sem dúvida, conversar em registro culto com a esposa, o marido, os filhos, os pais, os amigos, a amante, o amante. A um agradarão o sotaque e o linguajar gaúchos; outro preferirá o sotaque e o linguajar nordestinos, e ambos terão seus motivos válidos no gosto pessoal. Não obstante, cumpre pedagogicamente preservar de pé a hierarquia linguística, e ensinar que "qualquer língua culta é superior a qualquer língua natural", haja vista que "toda língua culta tem hoje em torno de 400 mil palavras, enquanto nenhuma natural vai além de três ou quatro mil palavras", e, desse modo, "quem domina o código culto tem uma capacidade incomparavelmente maior de expressar-se, de compreender seu próprio contexto e contextos alternativos, de relativizar certezas, de compreender o ponto de vista do outro e refutá-lo, de manipular variáveis, de argumentar e contra-argumentar". (2009, p.136) Eis o que Rouanet pontua, e seu amigo José Guilherme Merquior (não consigo localizar em qual página de A natureza do processo) acrescentaria: e não se confunda hierarquia com desigualdade, dado que a sociedade japonesa é uma das mais hierarquizadas do mundo e, ao mesmo tempo, uma das menos desiguais do mundo.

Oswald de Andrade profetizou, numa célebre frase: "A massa ainda comerá o biscoito fino que fabrico." Não se rendam os professores de Língua Portuguesa no Brasil à maldade de querer convencer seus alunos de que bolacha Maria é tão bom quanto.

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Em terra de cego...

Uma diferença tão clara quanto injusta, nos tempos atuais, entre um pensamento considerado à direita e um pensamento considerado à esquerda é que este, para convencer e receber aplausos, está via de regra isento de se expressar com apoio de fundamentação consistente e persuasiva... ao passo que o outro pode mobilizar argumentos, dados, números, estatísticas, gráficos, bibliografias, uma retórica de Quintiliano e uma oratória de Demóstenes, que, na mais favorável das recepções, não deverá passar de uma voz clamante no deserto que não há de endireitar nenhuma vereda para o Senhor.

É a impressão que me dá a "Página aberta" da revista VEJA de 15 de junho deste ano, em que colaborou o reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, advogado e sociólogo José Vicente. O autor do artigo "O que é isso?" protesta contra a ausência de representatividade negra no ministério nomeado pelo atual presidente interino da República, e se pauta, no propósito de evidenciar o preconceito das escolhas, em traçar resumidamente a participação dos negros na sociedade brasileira. Da opressão escravocrata teríamos transitado por um período (governo FHC, Lula e Dilma) de políticas étnicas mais igualitárias, com negros exercendo cargos de ministros do executivo (Pelé, Benedita da Silva, Gilberto Gil...) e do judiciário (Joaquim Barbosa), até que, na gestão Temer, "os negros foram inexplicavelmente convidados a sair e deixar o lugar, mais uma vez, para os homens brancos e de olhos azuis". (p.61)

Assim como toda brincadeira, toda metáfora e toda hipérbole têm um fundo de verdade. Pois o magnífico José Vicente não terá enxergado pele ebúrnea e íris glaucas (terá?) em Eliseu Padilha, Henrique Alves, Raul Jungmann, Sérgio Etchengoyen e outros. Exagerou, escandinavizando brasileiros, para demarcar com pseudo-precisão cirúrgica, num país tão miscigenado, eles brancos e nós negros. Dentre os ministros de Michel, não querendo de antemão intitulá-los afrodescendentes, ninguém seria filho, neto, bisneto, tataraneto de negro, de negra? Ninguém?

Se o importante não é só a competência do nomeado, mas também sua representatividade, o Partido da Mulher Brasileira (PMB) assegura, na sua composição, que um homem pode muito bem representar uma mulher, dado que, pelo menos em novembro de 2015, mais de 90% dos deputados federais da legenda pertenciam ao sexo masculino... Nessa linha de raciocínio, por que não imaginarmos um caso em que um branquelão represente melhor, na prática, os interesses da população negra ou um caso em que um negro represente apenas, na prática, os próprios? Porque, no fim das contas, a maioria dos cidadãos desejamos um representante de nossos interesses, e não da cor da nossa pele, ou do nosso sexo ou gênero.

O advogado e sociólogo magnífico também se rende ao maniqueísmo ético, e não apenas ao étnico. Segundo José Vicente, os negros, na história brasileira, foram sempre oprimidos e, quando não, foram heróis, na condição de vítimas da hegemonia sócio-política do branco. E "feneceram juntos nos porões da ditadura". (p.61) Nenhuma palavra, qualquer insinuação relativa ao fato de gente de toda cor ter estado também do outro lado, a serviço do regime civil-militar. Ainda: "Corrigindo-se uma injustiça histórica, o líder negro Zumbi dos Palmares foi reconhecido como herói nacional". (p.61) Nenhuma palavra, qualquer insinuação relativa ao fato de o ex-escravo ter mantido o sistema escravocrata no quilombo, onde negros escravizavam negros e o tal líder figurava como um imperador, um D. Pedro II africano.

Nessa questão, mais perspicaz foi Machado de Assis; como se sabe, um escritor negro; mas mais do que um escritor negro, o maior escritor de toda a literatura brasileira. Em suas Memórias póstumas de Brás Cubas, o escravo forro Prudêncio, maltratado na infância pelo filho do seu dono, adquire ele mesmo um escravo e o maltrata, reproduzindo os gestos e os dizeres ("Cala a boca, besta!") de que outrora fora vítima. Há quem interprete a passagem como só uma crítica à escravidão e aos efeitos perversos da opressão do homem branco. Mas Machado de Assis, íntimo dos grandes moralistas europeus e de Schopenhauer, dramatizava acima de tudo o egoísmo e a maldade inerentes ao ser humano, a todo e qualquer ser humano. Por isso vemos Sofia, em Quincas Borba, explorar sentimentalmente o rico Rubião, a mando do marido endividado - mulher e homem, ambos, crápulas. Outra passagem digna de nota, não do nosso escritor maior, mas do português José Saramago, consta em O ensaio sobre a cegueira, romance no qual um cego de nascença surpreende certo personagem por, em vez de manifestar a compaixão esperada de um deficiente físico, alvo de tanto sofrimento, comporta-se como um legítimo calhorda. Ao que um terceiro considera: ele sempre foi cego, mas é um homem como outro qualquer.

A exemplo de Tirésias, há cegos que sabem enxergar bem mais do que muita gente de olho são.