sábado, 9 de julho de 2016

Pela norma padrão e culta da "Inculta e Bela"

Logo no primeiro dia do primeiro semestre letivo do curso de Letras na UFMG, em 1998, a professora da disciplina Língua Portuguesa I exterminou, sem dó nem piedade, nossas esperanças de calouros burros de que ali, ao longo daqueles quatro anos, finalmente, aprenderíamos gramática. De jeito nenhum, pimpolhos das gírias. A proposta na faculdade seria antes de problematizar, questionar a chamada pelos linguistas gramática tradicional ou gramática normativa. Além do mais, que esquecêssemos as noções de "falar certo" e "falar errado" em matéria de qualquer idioma, pois a rigor o falante nativo de uma língua jamais erra ao nela se expressar; porque, se não obedece à norma padrão ou culta, nunca desrespeita a gramática internalizada; porque toda língua é dinâmica e concretizada em variantes históricas, regionais, sociais, etárias; porque, em suma, o considerado "correto" advém de uma imposição da classe dominante.

Na área da Linguística, então, tomamos conhecimento da luta de Marcos Bagno em se fazer reconhecer a legitimidade da diversidade linguística no Brasil, contra os preconceitos que inferiorizavam pronúncias e sintaxes desviantes da norma padrão (à qual, na fala, ninguém acataria 100%). Aprendemos a reverenciar a prata da casa, o eminente professor Mário Alberto Perini, autor dos livros Para uma nova gramática do português e A gramática gerativa, quem, naquele período, se aposentaria. Ouvimos o professor Luiz Carlos de Assis Rocha, carinhosamente mais conhecido na FALE (a Faculdade de Letras da Federal de Minas) como Rochinha, defender seu projeto GNM - a Gramática Nunca Mais. E fomos incentivados a fazer cara feia ao ouvirmos as lições de Pasquale Cipro Neto, professor que se celebrizou por apresentar o programa Nossa língua portuguesa, exibido pela TV Cultura.

Esta semana e especialmente ontem, essas lembranças ressurgiram, despertando em mim bons sentimentos nostálgicos. Direcionei toda minha formação acadêmica para a Literatura. E hoje, há mais de dez anos, sou professor universitário de Literatura. Mas tive a feliz oportunidade de integrar a banca avaliadora de TCC's (os famosos Trabalhos de Conclusão de Curso) que tinham por tema de pesquisa a diversidade linguística e por propósito defender que as variantes faladas pelos alunos assumam patamar de equivalência à língua padrão, à norma culta nas escolas de ensino básico.

Concordei que a escola tem por dever o combate ao preconceito linguístico. E não só ao linguístico, como também ao preconceito étnico, religioso, partidário, de gênero, enfim a todos os preconceitos, embora eu tenha consciência de que a tarefa de nos libertarmos disso, totalmente, seja por enquanto uma utopia. Concordei que aos professores de língua portuguesa do ensino fundamental e médio cabe informar, em sala de aula, que as línguas são dinâmicas, e assim se modificam no tempo, no espaço e no contexto, de modo que há maneiras de se falar adequadas numa certa circunstância que se tornam inadequadas em outra; que pessoas de lugares distintos falam de formas distintas, e nenhuma é, em si, melhor ou mais bonita do que a outra; que não é educado menosprezar ou ridicularizar ninguém por falar isso ou aquilo (vale sublinhar que a língua padrão não constitui o único parâmetro que pode estabelecer uma manifestação de preconceito linguístico: já fui alvo da chacota de colegas do antigo segundo grau por eu não estar por dentro do significado de "feudal", na acepção específica do grupo: "véi, isso é muito feudal").

Porém, não podia concordar que a escola devesse ensinar, igualmente, a norma padrão e as variantes. Para quê, se o aluno já teria aprendido suas variantes no convívio com os familiares, com os amigos, com os colegas, no convívio amplo com a sociedade? Gastar dinheiro público para ensinar o "Pai Nosso" ao Papa? Não: invistam-se dinheiro e tempo, na escola, em ensinar e aprender a complexidade sintática e a riqueza lexical da língua culta, a única que prepara o aluno para o exercício pleno da cidadania (compreender um contrato que eventualmente assinará, interpretar a Constituição Federal, Estadual, por exemplo) e prepara para ingresso no ensino superior (ler um tratado de cardiologia, um livro de Kant, um manual de contabilidade etc).

"É que a língua culta é uma imposição da classe dominante!" E as normas de trânsito - resultam da decisão de quem? Qual plebiscito decidiu que o vermelho do semáforo significa "pare" e o verde, "siga"? Mas, afinal (1), a que classe pertenceram (e pertencem) autores de descobertas na Matemática, na Biologia, na Física, na Química, na Geografia...? Que ranço tolo é esse que, nas suas últimas consequências, nos levaria a rejeitar conhecimentos, vacinas, remédios, tecnologias, por as rotularmos como "imposição da classe dominante"? E, afinal (2), o que exatamente define a classe dominante? Os ricos? Rico é quem tem renda a partir de quantos reais, dólares, euros? Silvio Santos interferiria nas regras gramaticais ("Má oêee"). Os políticos? Figueiredo, Fernando Collor, Pinduca, Tiririca determinariam qual a variante de maior prestígio ("Florentina, Florentina...").

"É que os alunos pobres têm mais dificuldade de aprender a norma padrão!" Quem decreta algo desse teor está atestando que a pobreza vem acompanhada, necessariamente, da burrice. Isso mesmo. Não fosse assim, como imaginarmos que um aluno, considerando-se para ele, na prática, inacessível um registro de sua própria língua nativa, consiga aprender um idioma estrangeiro? Que esse aluno vá ingressar no ensino superior, caso não se traduzam para sua respectiva variante toda a bibliografia do curso?

A culpa não é da língua culta, da norma padrão. A culpa é das nossas graves desigualdades sociais, que as políticas públicas não alcançam resolver de fato, condição piorada pelo que Sergio Paulo Rouanet, em As razões do iluminismo (livro de 1987), denomina "o novo irracionalismo brasileiro", três decênios depois ainda imperante, firme e forte. A culpa é do fracasso catastrófico do nosso sistema educacional, perante o qual toda a boa vontade e sabedoria dos pedagogos e docentes discípulos de Paulo Freire pregam tão linda quanto impotentemente. Segundo muitos destes, a culpa seria do capitalismo, verificação que finge ignorar que os melhores modelos atuais de educação nós os encontramos na Finlândia e no Canadá, dois países super-anticapitalistas, não é verdade? A culpa é das estrelas que fazem brilhar o discurso inimigo da alta cultura, na qual, segundo Rouanet, "lateja a esperança de um futuro além das classes, e é nela, quer se queira ou não, que estão contidas as grades de análise e as categorias teóricas que permitem articular uma prática libertadora". (As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p.130)

Soa pernóstico, sem dúvida, conversar em registro culto com a esposa, o marido, os filhos, os pais, os amigos, a amante, o amante. A um agradarão o sotaque e o linguajar gaúchos; outro preferirá o sotaque e o linguajar nordestinos, e ambos terão seus motivos válidos no gosto pessoal. Não obstante, cumpre pedagogicamente preservar de pé a hierarquia linguística, e ensinar que "qualquer língua culta é superior a qualquer língua natural", haja vista que "toda língua culta tem hoje em torno de 400 mil palavras, enquanto nenhuma natural vai além de três ou quatro mil palavras", e, desse modo, "quem domina o código culto tem uma capacidade incomparavelmente maior de expressar-se, de compreender seu próprio contexto e contextos alternativos, de relativizar certezas, de compreender o ponto de vista do outro e refutá-lo, de manipular variáveis, de argumentar e contra-argumentar". (2009, p.136) Eis o que Rouanet pontua, e seu amigo José Guilherme Merquior (não consigo localizar em qual página de A natureza do processo) acrescentaria: e não se confunda hierarquia com desigualdade, dado que a sociedade japonesa é uma das mais hierarquizadas do mundo e, ao mesmo tempo, uma das menos desiguais do mundo.

Oswald de Andrade profetizou, numa célebre frase: "A massa ainda comerá o biscoito fino que fabrico." Não se rendam os professores de Língua Portuguesa no Brasil à maldade de querer convencer seus alunos de que bolacha Maria é tão bom quanto.

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