sexta-feira, 1 de julho de 2016

Em terra de cego...

Uma diferença tão clara quanto injusta, nos tempos atuais, entre um pensamento considerado à direita e um pensamento considerado à esquerda é que este, para convencer e receber aplausos, está via de regra isento de se expressar com apoio de fundamentação consistente e persuasiva... ao passo que o outro pode mobilizar argumentos, dados, números, estatísticas, gráficos, bibliografias, uma retórica de Quintiliano e uma oratória de Demóstenes, que, na mais favorável das recepções, não deverá passar de uma voz clamante no deserto que não há de endireitar nenhuma vereda para o Senhor.

É a impressão que me dá a "Página aberta" da revista VEJA de 15 de junho deste ano, em que colaborou o reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, advogado e sociólogo José Vicente. O autor do artigo "O que é isso?" protesta contra a ausência de representatividade negra no ministério nomeado pelo atual presidente interino da República, e se pauta, no propósito de evidenciar o preconceito das escolhas, em traçar resumidamente a participação dos negros na sociedade brasileira. Da opressão escravocrata teríamos transitado por um período (governo FHC, Lula e Dilma) de políticas étnicas mais igualitárias, com negros exercendo cargos de ministros do executivo (Pelé, Benedita da Silva, Gilberto Gil...) e do judiciário (Joaquim Barbosa), até que, na gestão Temer, "os negros foram inexplicavelmente convidados a sair e deixar o lugar, mais uma vez, para os homens brancos e de olhos azuis". (p.61)

Assim como toda brincadeira, toda metáfora e toda hipérbole têm um fundo de verdade. Pois o magnífico José Vicente não terá enxergado pele ebúrnea e íris glaucas (terá?) em Eliseu Padilha, Henrique Alves, Raul Jungmann, Sérgio Etchengoyen e outros. Exagerou, escandinavizando brasileiros, para demarcar com pseudo-precisão cirúrgica, num país tão miscigenado, eles brancos e nós negros. Dentre os ministros de Michel, não querendo de antemão intitulá-los afrodescendentes, ninguém seria filho, neto, bisneto, tataraneto de negro, de negra? Ninguém?

Se o importante não é só a competência do nomeado, mas também sua representatividade, o Partido da Mulher Brasileira (PMB) assegura, na sua composição, que um homem pode muito bem representar uma mulher, dado que, pelo menos em novembro de 2015, mais de 90% dos deputados federais da legenda pertenciam ao sexo masculino... Nessa linha de raciocínio, por que não imaginarmos um caso em que um branquelão represente melhor, na prática, os interesses da população negra ou um caso em que um negro represente apenas, na prática, os próprios? Porque, no fim das contas, a maioria dos cidadãos desejamos um representante de nossos interesses, e não da cor da nossa pele, ou do nosso sexo ou gênero.

O advogado e sociólogo magnífico também se rende ao maniqueísmo ético, e não apenas ao étnico. Segundo José Vicente, os negros, na história brasileira, foram sempre oprimidos e, quando não, foram heróis, na condição de vítimas da hegemonia sócio-política do branco. E "feneceram juntos nos porões da ditadura". (p.61) Nenhuma palavra, qualquer insinuação relativa ao fato de gente de toda cor ter estado também do outro lado, a serviço do regime civil-militar. Ainda: "Corrigindo-se uma injustiça histórica, o líder negro Zumbi dos Palmares foi reconhecido como herói nacional". (p.61) Nenhuma palavra, qualquer insinuação relativa ao fato de o ex-escravo ter mantido o sistema escravocrata no quilombo, onde negros escravizavam negros e o tal líder figurava como um imperador, um D. Pedro II africano.

Nessa questão, mais perspicaz foi Machado de Assis; como se sabe, um escritor negro; mas mais do que um escritor negro, o maior escritor de toda a literatura brasileira. Em suas Memórias póstumas de Brás Cubas, o escravo forro Prudêncio, maltratado na infância pelo filho do seu dono, adquire ele mesmo um escravo e o maltrata, reproduzindo os gestos e os dizeres ("Cala a boca, besta!") de que outrora fora vítima. Há quem interprete a passagem como só uma crítica à escravidão e aos efeitos perversos da opressão do homem branco. Mas Machado de Assis, íntimo dos grandes moralistas europeus e de Schopenhauer, dramatizava acima de tudo o egoísmo e a maldade inerentes ao ser humano, a todo e qualquer ser humano. Por isso vemos Sofia, em Quincas Borba, explorar sentimentalmente o rico Rubião, a mando do marido endividado - mulher e homem, ambos, crápulas. Outra passagem digna de nota, não do nosso escritor maior, mas do português José Saramago, consta em O ensaio sobre a cegueira, romance no qual um cego de nascença surpreende certo personagem por, em vez de manifestar a compaixão esperada de um deficiente físico, alvo de tanto sofrimento, comporta-se como um legítimo calhorda. Ao que um terceiro considera: ele sempre foi cego, mas é um homem como outro qualquer.

A exemplo de Tirésias, há cegos que sabem enxergar bem mais do que muita gente de olho são.

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