quinta-feira, 1 de setembro de 2016

De diretores de consciência e pedofilia

Ai do professor universitário que ousar, em texto publicado, decretar que boa literatura não é isso, que boa literatura só pode ser aquilo. Seus pares, caso o leiam ou tomem conhecimento de sua atitude, hão de recriminá-lo, acusando-o, no mais suave dos termos: "Seu diretor de consciência!"

Dificilmente, porém, vamos nos deparar hoje com um artigo ou qualquer trabalho acadêmico dessa espécie. Não por motivos de uma glória maior da harmonia intelectual brasileira, mas por um quase consenso de que já não se sustenta universalmente nenhuma verdade última - talvez nem primeira - referente às artes em geral. O artista e sua obra existem, em nossos dias, acima de tudo como individualidades.

Nessas condições, grandes críticos literários do passado ainda não se livraram da pecha de diretores de consciência. Álvaro Lins, Alceu Amoroso Lima, Mário Faustino e outros nomes fortes da nossa crítica em meados do século XX teriam sido autoritários, ao presunçosamente aprovarem ou reprovarem um escritor ou um livro. Quem eles pensavam que eram, na decisão elitista de que esse era bom, aquele nem tanto e um outro indigno de publicação? O leitor comum não seria capaz, por si só, desse discernimento? Não seria capaz de formular uma opinião própria? E o gosto pessoal - onde ficaria?

Apesar dos pesares, estou com José Guilherme Merquior, quem teimou, no decorrer das décadas de 60, 70 e 80, em resgatar o caráter judicativo da crítica literária, e nessa postura atacou a geração de 45 dos poetas brasileiros, para enaltecer João Cabral de Melo Neto, e apontou os males do pós-estruturalismo, para iluminar os benefícios do pensamento liberal. Naturalmente, caberia ao leitor concordar ou não. Nessa disposição - democrática, por excelência - de considerar a opinião alheia e diferente é que Merquior se tornou um dos protagonistas na história da polêmica brasileira.

Qualquer texto que se preze objetiva convencer, persuadir. De preferência, munido de toda a competência e instrumentos argumentativos do autor. Não fosse assim, haveria razão de falar e de escrever publicamente? Donde a permanência, legítima por sinal, dos chamados formadores de opinião. Uns não gostam de ler e ouvir o que pensa sobre certo assunto Arnaldo Jabor? Marilena Chauí? Diogo Mainardi? João Pereira Coutinho? Luiz Felipe Pondé e Leandro Karnal?

Mas o formador de opinião, o intelectual deve reconhecer, assim como o Estado, certos limites para suas intervenções. O respeito às diferenças de várias ordens (geopolíticas, ideológicas, étnicas, culturais, sexuais, identitárias, socioeconômicas) constitui uma cláusula do pensamento democrático e liberal contemporâneo, que, no entanto, não pode significar de jeito nenhum a liberdade de envolver a bel-prazer, na esfera do ser e do agir individuais, um outro indivíduo. Sobretudo quando se trata de um outro indivíduo considerado, perante os costumes e valores sociais e a lei, alguém incapaz de responder plenamente pelos próprios atos e decisões.

Por que toco nesse assunto? O motivo contextual específico reside no capítulo "Cinema e gênero", assinado pelo professor universitário Denilson Lopes, texto contido no livro História mundial do cinema, organizado por Fernando Mascarello, em sua 7a edição de 2012 pela Papirus; eis o trecho mais importante:

"Talvez num futuro, que espero próximo, haja um tempo em que falar de pedofilia seja apenas falar de uma expressão afetiva, tão impura e divina, violenta e intensa, terna e animal, como outra qualquer, apenas parte do que, na falta de uma palavra melhor, ainda chamamos de condição humana." (p.392)

Consulte o leitor o significado de pedofilia e o de criança. Acresce que a íntegra do capítulo não menciona qualquer parâmetro etário. Pedofilia é pedofilia. E tire suas próprias conclusões a respeito do trecho. A universidade costuma enxergar os velhos críticos literários como arrogantes e autoritários diretores de consciência. Mas não teríamos substituído uma arrogância e um autoritarismo por outros, o do "qualquer coisa serve", o do anything goes, na língua de Theodore Dalrymple?




sexta-feira, 22 de julho de 2016

Roger Waters, o socialista, vs David Gilmour, o burguês

Fofoca-se que, na definição do setlist do show histórico que reuniria no mesmo palco, após duas décadas separados, os integrantes da formação canônica do Pink Floyd, Roger Waters quis que a banda tocasse o clássico "Another brick in the wall". David Gilmour vetou, cônscio do tremendo desrespeito: como cantar "We don't need no education" ("Não, nós não precisamos de educação") no Live 8 (2005), um ato humanitário grandioso em favor da África, onde o baixíssimo índice de escolaridade era (e continua sendo) apenas um dos números indigestos do Continente?

Desde a juventude, Roger Waters é metido a socialista. Ainda hoje a pose não parece ter mudado em nada, à revelia do salto - muitíssimo mercadológico - de riqueza do músico britânico. No período em que assumiu a liderança do Pink Floyd, com o afastamento de Syd Barrett, o baixista gostava de criticar Gilmour, acusando-o de só se interessar em criar seus magníficos solos de guitarra e pegar mulher. O guitarrista, na repreensão do cérebro inquestionável da banda, não se entusiasmava com o lado conceitual, ideológico, de crítica social tão nítido nos álbuns Animals (1977), The wall (1979), The final cut (1983) e outros. Em vez disso, preferia valorizar... a música.

A propósito, em um de seus rasgos antológicos de ironia tão cruel quanto sensata, Friedrich Nietzsche questionou compositores como Richard Wagner que almejavam, a todo custo, convencer de que eram mais do que compositores, deixando entrever nessa atitude o quão em pouca ou má conta teriam a música somente música.

Mas também é estranho o socialismo de Roger Waters, socialismo que, de qualquer forma, não deixa de ser o espécime de uma espécie. A narrativa da genial ópera-rock The wall, por exemplo, de sua quase inteira autoria, alegoriza (não só isto, claro) o solipsismo dele mesmo, sua confessa dificuldade em interagir no palco com o público, a ponto de, diante dos aplausos mais estrepitosos a Eric Clapton do que ao já ex-Pink Floyd, não ter se contido em inveja: "Ah, sim... o grande Eric Clapton."

A lista desses gestos sugerem (não sugerem?) que o socialismo de Waters, se implementado, nos levaria ao fascismo que o próprio baixista critica em The wall, valendo ressaltar que fascistas não foram apenas Mussolini, Hitler, Franco e Salazar, com seus governos de direita, mas também Stalin e Fidel, com suas ditaduras de esquerda. Que outra interpretação hipotética teríamos de tamanha insensibilidade, rejeição e intolerância frente ao outro - da miséria do outro ao sucesso do outro?

No fim das contas, o burguesinho e pegador David Gilmour, a nódoa capitalista do Pink Floyd, sempre foi o mais atento aos direitos autorais devidos a Syd Barrett, guitarrista destruído pelas drogas a quem substituiu na banda, e muito mais sensível às mazelas dos africanos.

sábado, 9 de julho de 2016

Pela norma padrão e culta da "Inculta e Bela"

Logo no primeiro dia do primeiro semestre letivo do curso de Letras na UFMG, em 1998, a professora da disciplina Língua Portuguesa I exterminou, sem dó nem piedade, nossas esperanças de calouros burros de que ali, ao longo daqueles quatro anos, finalmente, aprenderíamos gramática. De jeito nenhum, pimpolhos das gírias. A proposta na faculdade seria antes de problematizar, questionar a chamada pelos linguistas gramática tradicional ou gramática normativa. Além do mais, que esquecêssemos as noções de "falar certo" e "falar errado" em matéria de qualquer idioma, pois a rigor o falante nativo de uma língua jamais erra ao nela se expressar; porque, se não obedece à norma padrão ou culta, nunca desrespeita a gramática internalizada; porque toda língua é dinâmica e concretizada em variantes históricas, regionais, sociais, etárias; porque, em suma, o considerado "correto" advém de uma imposição da classe dominante.

Na área da Linguística, então, tomamos conhecimento da luta de Marcos Bagno em se fazer reconhecer a legitimidade da diversidade linguística no Brasil, contra os preconceitos que inferiorizavam pronúncias e sintaxes desviantes da norma padrão (à qual, na fala, ninguém acataria 100%). Aprendemos a reverenciar a prata da casa, o eminente professor Mário Alberto Perini, autor dos livros Para uma nova gramática do português e A gramática gerativa, quem, naquele período, se aposentaria. Ouvimos o professor Luiz Carlos de Assis Rocha, carinhosamente mais conhecido na FALE (a Faculdade de Letras da Federal de Minas) como Rochinha, defender seu projeto GNM - a Gramática Nunca Mais. E fomos incentivados a fazer cara feia ao ouvirmos as lições de Pasquale Cipro Neto, professor que se celebrizou por apresentar o programa Nossa língua portuguesa, exibido pela TV Cultura.

Esta semana e especialmente ontem, essas lembranças ressurgiram, despertando em mim bons sentimentos nostálgicos. Direcionei toda minha formação acadêmica para a Literatura. E hoje, há mais de dez anos, sou professor universitário de Literatura. Mas tive a feliz oportunidade de integrar a banca avaliadora de TCC's (os famosos Trabalhos de Conclusão de Curso) que tinham por tema de pesquisa a diversidade linguística e por propósito defender que as variantes faladas pelos alunos assumam patamar de equivalência à língua padrão, à norma culta nas escolas de ensino básico.

Concordei que a escola tem por dever o combate ao preconceito linguístico. E não só ao linguístico, como também ao preconceito étnico, religioso, partidário, de gênero, enfim a todos os preconceitos, embora eu tenha consciência de que a tarefa de nos libertarmos disso, totalmente, seja por enquanto uma utopia. Concordei que aos professores de língua portuguesa do ensino fundamental e médio cabe informar, em sala de aula, que as línguas são dinâmicas, e assim se modificam no tempo, no espaço e no contexto, de modo que há maneiras de se falar adequadas numa certa circunstância que se tornam inadequadas em outra; que pessoas de lugares distintos falam de formas distintas, e nenhuma é, em si, melhor ou mais bonita do que a outra; que não é educado menosprezar ou ridicularizar ninguém por falar isso ou aquilo (vale sublinhar que a língua padrão não constitui o único parâmetro que pode estabelecer uma manifestação de preconceito linguístico: já fui alvo da chacota de colegas do antigo segundo grau por eu não estar por dentro do significado de "feudal", na acepção específica do grupo: "véi, isso é muito feudal").

Porém, não podia concordar que a escola devesse ensinar, igualmente, a norma padrão e as variantes. Para quê, se o aluno já teria aprendido suas variantes no convívio com os familiares, com os amigos, com os colegas, no convívio amplo com a sociedade? Gastar dinheiro público para ensinar o "Pai Nosso" ao Papa? Não: invistam-se dinheiro e tempo, na escola, em ensinar e aprender a complexidade sintática e a riqueza lexical da língua culta, a única que prepara o aluno para o exercício pleno da cidadania (compreender um contrato que eventualmente assinará, interpretar a Constituição Federal, Estadual, por exemplo) e prepara para ingresso no ensino superior (ler um tratado de cardiologia, um livro de Kant, um manual de contabilidade etc).

"É que a língua culta é uma imposição da classe dominante!" E as normas de trânsito - resultam da decisão de quem? Qual plebiscito decidiu que o vermelho do semáforo significa "pare" e o verde, "siga"? Mas, afinal (1), a que classe pertenceram (e pertencem) autores de descobertas na Matemática, na Biologia, na Física, na Química, na Geografia...? Que ranço tolo é esse que, nas suas últimas consequências, nos levaria a rejeitar conhecimentos, vacinas, remédios, tecnologias, por as rotularmos como "imposição da classe dominante"? E, afinal (2), o que exatamente define a classe dominante? Os ricos? Rico é quem tem renda a partir de quantos reais, dólares, euros? Silvio Santos interferiria nas regras gramaticais ("Má oêee"). Os políticos? Figueiredo, Fernando Collor, Pinduca, Tiririca determinariam qual a variante de maior prestígio ("Florentina, Florentina...").

"É que os alunos pobres têm mais dificuldade de aprender a norma padrão!" Quem decreta algo desse teor está atestando que a pobreza vem acompanhada, necessariamente, da burrice. Isso mesmo. Não fosse assim, como imaginarmos que um aluno, considerando-se para ele, na prática, inacessível um registro de sua própria língua nativa, consiga aprender um idioma estrangeiro? Que esse aluno vá ingressar no ensino superior, caso não se traduzam para sua respectiva variante toda a bibliografia do curso?

A culpa não é da língua culta, da norma padrão. A culpa é das nossas graves desigualdades sociais, que as políticas públicas não alcançam resolver de fato, condição piorada pelo que Sergio Paulo Rouanet, em As razões do iluminismo (livro de 1987), denomina "o novo irracionalismo brasileiro", três decênios depois ainda imperante, firme e forte. A culpa é do fracasso catastrófico do nosso sistema educacional, perante o qual toda a boa vontade e sabedoria dos pedagogos e docentes discípulos de Paulo Freire pregam tão linda quanto impotentemente. Segundo muitos destes, a culpa seria do capitalismo, verificação que finge ignorar que os melhores modelos atuais de educação nós os encontramos na Finlândia e no Canadá, dois países super-anticapitalistas, não é verdade? A culpa é das estrelas que fazem brilhar o discurso inimigo da alta cultura, na qual, segundo Rouanet, "lateja a esperança de um futuro além das classes, e é nela, quer se queira ou não, que estão contidas as grades de análise e as categorias teóricas que permitem articular uma prática libertadora". (As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p.130)

Soa pernóstico, sem dúvida, conversar em registro culto com a esposa, o marido, os filhos, os pais, os amigos, a amante, o amante. A um agradarão o sotaque e o linguajar gaúchos; outro preferirá o sotaque e o linguajar nordestinos, e ambos terão seus motivos válidos no gosto pessoal. Não obstante, cumpre pedagogicamente preservar de pé a hierarquia linguística, e ensinar que "qualquer língua culta é superior a qualquer língua natural", haja vista que "toda língua culta tem hoje em torno de 400 mil palavras, enquanto nenhuma natural vai além de três ou quatro mil palavras", e, desse modo, "quem domina o código culto tem uma capacidade incomparavelmente maior de expressar-se, de compreender seu próprio contexto e contextos alternativos, de relativizar certezas, de compreender o ponto de vista do outro e refutá-lo, de manipular variáveis, de argumentar e contra-argumentar". (2009, p.136) Eis o que Rouanet pontua, e seu amigo José Guilherme Merquior (não consigo localizar em qual página de A natureza do processo) acrescentaria: e não se confunda hierarquia com desigualdade, dado que a sociedade japonesa é uma das mais hierarquizadas do mundo e, ao mesmo tempo, uma das menos desiguais do mundo.

Oswald de Andrade profetizou, numa célebre frase: "A massa ainda comerá o biscoito fino que fabrico." Não se rendam os professores de Língua Portuguesa no Brasil à maldade de querer convencer seus alunos de que bolacha Maria é tão bom quanto.

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Em terra de cego...

Uma diferença tão clara quanto injusta, nos tempos atuais, entre um pensamento considerado à direita e um pensamento considerado à esquerda é que este, para convencer e receber aplausos, está via de regra isento de se expressar com apoio de fundamentação consistente e persuasiva... ao passo que o outro pode mobilizar argumentos, dados, números, estatísticas, gráficos, bibliografias, uma retórica de Quintiliano e uma oratória de Demóstenes, que, na mais favorável das recepções, não deverá passar de uma voz clamante no deserto que não há de endireitar nenhuma vereda para o Senhor.

É a impressão que me dá a "Página aberta" da revista VEJA de 15 de junho deste ano, em que colaborou o reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, advogado e sociólogo José Vicente. O autor do artigo "O que é isso?" protesta contra a ausência de representatividade negra no ministério nomeado pelo atual presidente interino da República, e se pauta, no propósito de evidenciar o preconceito das escolhas, em traçar resumidamente a participação dos negros na sociedade brasileira. Da opressão escravocrata teríamos transitado por um período (governo FHC, Lula e Dilma) de políticas étnicas mais igualitárias, com negros exercendo cargos de ministros do executivo (Pelé, Benedita da Silva, Gilberto Gil...) e do judiciário (Joaquim Barbosa), até que, na gestão Temer, "os negros foram inexplicavelmente convidados a sair e deixar o lugar, mais uma vez, para os homens brancos e de olhos azuis". (p.61)

Assim como toda brincadeira, toda metáfora e toda hipérbole têm um fundo de verdade. Pois o magnífico José Vicente não terá enxergado pele ebúrnea e íris glaucas (terá?) em Eliseu Padilha, Henrique Alves, Raul Jungmann, Sérgio Etchengoyen e outros. Exagerou, escandinavizando brasileiros, para demarcar com pseudo-precisão cirúrgica, num país tão miscigenado, eles brancos e nós negros. Dentre os ministros de Michel, não querendo de antemão intitulá-los afrodescendentes, ninguém seria filho, neto, bisneto, tataraneto de negro, de negra? Ninguém?

Se o importante não é só a competência do nomeado, mas também sua representatividade, o Partido da Mulher Brasileira (PMB) assegura, na sua composição, que um homem pode muito bem representar uma mulher, dado que, pelo menos em novembro de 2015, mais de 90% dos deputados federais da legenda pertenciam ao sexo masculino... Nessa linha de raciocínio, por que não imaginarmos um caso em que um branquelão represente melhor, na prática, os interesses da população negra ou um caso em que um negro represente apenas, na prática, os próprios? Porque, no fim das contas, a maioria dos cidadãos desejamos um representante de nossos interesses, e não da cor da nossa pele, ou do nosso sexo ou gênero.

O advogado e sociólogo magnífico também se rende ao maniqueísmo ético, e não apenas ao étnico. Segundo José Vicente, os negros, na história brasileira, foram sempre oprimidos e, quando não, foram heróis, na condição de vítimas da hegemonia sócio-política do branco. E "feneceram juntos nos porões da ditadura". (p.61) Nenhuma palavra, qualquer insinuação relativa ao fato de gente de toda cor ter estado também do outro lado, a serviço do regime civil-militar. Ainda: "Corrigindo-se uma injustiça histórica, o líder negro Zumbi dos Palmares foi reconhecido como herói nacional". (p.61) Nenhuma palavra, qualquer insinuação relativa ao fato de o ex-escravo ter mantido o sistema escravocrata no quilombo, onde negros escravizavam negros e o tal líder figurava como um imperador, um D. Pedro II africano.

Nessa questão, mais perspicaz foi Machado de Assis; como se sabe, um escritor negro; mas mais do que um escritor negro, o maior escritor de toda a literatura brasileira. Em suas Memórias póstumas de Brás Cubas, o escravo forro Prudêncio, maltratado na infância pelo filho do seu dono, adquire ele mesmo um escravo e o maltrata, reproduzindo os gestos e os dizeres ("Cala a boca, besta!") de que outrora fora vítima. Há quem interprete a passagem como só uma crítica à escravidão e aos efeitos perversos da opressão do homem branco. Mas Machado de Assis, íntimo dos grandes moralistas europeus e de Schopenhauer, dramatizava acima de tudo o egoísmo e a maldade inerentes ao ser humano, a todo e qualquer ser humano. Por isso vemos Sofia, em Quincas Borba, explorar sentimentalmente o rico Rubião, a mando do marido endividado - mulher e homem, ambos, crápulas. Outra passagem digna de nota, não do nosso escritor maior, mas do português José Saramago, consta em O ensaio sobre a cegueira, romance no qual um cego de nascença surpreende certo personagem por, em vez de manifestar a compaixão esperada de um deficiente físico, alvo de tanto sofrimento, comporta-se como um legítimo calhorda. Ao que um terceiro considera: ele sempre foi cego, mas é um homem como outro qualquer.

A exemplo de Tirésias, há cegos que sabem enxergar bem mais do que muita gente de olho são.

domingo, 26 de junho de 2016

Por uma pedagogia burguesa (eu disse um palavrão?)

O politicamente correto de nossa atual pedagogia hegemônica torce o nariz para o ensinamento da célebre fábula da cigarra e das formigas, apologia do esforço próprio e da responsabilidade diante do futuro - valores execráveis (não é mesmo?) da sociedade burguesa, que, retratada nessa pequena narrativa, glorifica o trabalho incansável e pune quem somente se preocupou em cantar. Pois a interpretação mais torta do que o nariz daqueles que a emitem e defendem compreende a fábula como um ataque à arte e à liberdade... e argumentam que o canto é, sim, socialmente importante. Mas a lição moral não o contesta; a punição da cigarra não decorre de ela ter cantado, decorre de ela só ter cantado, e não ter trabalhado nadica de nada. Talvez fosse o caso de conceder ao inseto cantor uma bolsa, cujo valor seria extraído da mera bondade justiceira do governo?... ou do produto dos insetos trabalhadores?

Olavo Bilac (1865-1918), poeta não genial (é verdade), porém consciente de que a boa arte é fruto de quem "trabalha, e teima, e sofre, e sua", não se constrangeu nenhum pouquinho em afirmar que as formigas operosas consistem em exemplo superior para uma nação que se quer, de fato, próspera. E se fez de cigarra lúcida para as crianças nos versos abaixo:

"As formigas"

Cautelosas e prudentes,
O caminho atravessando,
As formigas diligentes
Vão andando, vão andando ...

Marcham em filas cerradas;
Não se separam; espiam
De um lado e de outro, assustadas,
E das pedras se desviam.

Entre os calhaus vão abrindo
Caminho estreito e seguro,
Aqui, ladeiras  subindo,
Acolá, galgando um muro.

Esta carrega a migalha;
Outra, com passo discreto,
Leva um pedaço de palha;
Outra, uma pata de inseto.

Carrega cada formiga
Aquilo que achou na estrada;
E nenhuma se fatiga,
Nenhuma para cansada.

Vede! enquanto negligentes
Estão as cigarras cantando,
Vão as formigas prudentes
Trabalhando e armazenando.

Também quando chega o frio,
E todo o fruto consome,
A formiga, que no estio
Trabalha, não sofre fome ...

Recorde-vos todo o dia
Das lições da Natureza:
O trabalho e a economia

São as bases da riqueza.

sábado, 18 de junho de 2016

Revolução, conservadorismo e Fernando Pessoa

Ao acusá-lo Lucas Mendes de defender opinião inversa à que havia emitido na semana anterior do programa Manhattan Connection, nosso saudoso Paulo Francis (1930-1997) irrompeu com contestação de ironia arrasadora, que vale uma máxima: "Toda pessoa inteligente é contraditória; só os burros não se contradizem." A frase - célebre como outras tantas do jornalista que se alçou à condição de personagem de si mesmo - ensina o que o poeta português Fernando Pessoa - o imperador da heteronímia e, por conseguinte, professor da multiplicidade ideológica - também ensinou: que o verdadeiro intelectual acorda republicano e vai dormir monarquista.

São dois bons antídotos para estes tempos de polarização política (coxinhas vs mortandelas) recrudescida como intolerância à opinião diversa. Mas se Paulo Francis soa repulsivo aos ouvidos de quem o tem por reacionário, de direita, conservador, soldado do liberalismo (termos considerados palavrões), o nome de Fernando Pessoa não incomodaria nada numa prescrição médica para o mal-estar das ideias. Será por quê? Afinal de contas, o mesmo autor que inflama a fé cristã nos belos versos "Cheio de Deus, não temo o que virá, / Pois, venha o que vier, nunca será / maior do que a minha alma", em Mensagem, nos convence de que Deus não passa de "um velho estúpido e doente, / Sempre a escarrar no chão / E a dizer indecências", nos versos contundentes atribuídos a Alberto Caeiro. E o mesmo poeta queridinho de tantos autointitulados revolucionários foi quem, no ótimo conto "O banqueiro anarquista", revelou pela voz clarividente de um personagem que:

"Um regime revolucionário, enquanto existe, e seja qual for o fim a que visa ou a ideia que o conduz, é materialmente só uma coisa - um regime revolucionário. Ora, um regime revolucionário quer dizer uma ditadura de guerra, ou, nas verdadeiras palavras, um regime militar despótico, porque o estado de guerra é imposto à sociedade por uma parte dela - aquela parte que assumiu revolucionariamente o poder. O que é que resulta? Resulta que quem se adaptar a esse regime, como a única coisa que ele é materialmente, imediatamente, é um regime militar despótico, adapta-se a um regime militar despótico. A ideia, que conduziu os revolucionários, o fim, a que visavam, desapareceu por completo da realidade social, que é ocupada exclusivamente pelo fenômeno guerreiro. De modo que o que sai de uma ditadura revolucionária - e tanto mais completamente sairá, quanto mais tempo essa ditadura durar - é uma sociedade guerreira do tipo ditatorial, isto é, um despotismo militar. Nem mesmo podia ser outra coisa. E foi sempre assim. Eu não sei muita história, mas o que sei acerta com isto; nem podia deixar de acertar. O que saiu das agitações políticas de Roma? O império Romano e seu despotismo militar. O que saiu da Revolução Francesa? Napoleão e seu despotismo militar. E você verá o que saiu da Revolução Russa. Qualquer coisa que vai atrasar dezenas de anos a realização da sociedade livre... Também o que era de se esperar de um povo de analfabetos e de místicos?..."

E ainda o mesmo poeta queridinho de tantos autointitulados revolucionários foi quem concedeu ao semi-heterônimo Bernardo Soares a autoria destas linhas de O livro do desassossego:

"Todo o dia, em toda a sua desolação de nuvens leves e mornas, foi ocupado pelas informações de que havia revolução. Estas notícias, falsas ou certas, enchem-me de um desconforto especial, misto de desdém e de náusea física. Dói-me na inteligência que alguém julgue que altera alguma coisa agitando-se. A violência, seja qual for, foi sempre para mim uma forma esbugalhada de estupidez humana. Depois, todos os revolucionários são estúpidos, como, em grau menor, porque menos incômodo, o são todos os reformadores.

"Revolucionário ou reformador - o erro é o mesmo. Impotente para dominar e reformar a própria atitude para com a vida, que é tudo, ou o seu próprio ser, que é quase tudo, o homem foge para querer modificar os outros e o mundo externo. Todo o revolucionário, todo o reformador, é um evadido. Combater é não ser capaz de combater-se. Reformar é não ter emenda possível."

Como se vê, para titio Pessoa, havia pelo menos um mínimo (mais do que isso, né?) de dignidade semântica e ideológica nas palavras "reacionário", "conservador", "de direita", e por que não acrescentar, "liberal".

sábado, 4 de junho de 2016

Mulheres com o russo em Berlim

Para muitos, A rosa do povo, publicado em 1945 em tiragem quase clandestina, é o livro maior de um poeta maior. De fato, no volume constam os antológicos "Procura da poesia", "A flor e a náusea", "Áporo", "Edifício São Borja", "Caso do vestido", "Morte do leiteiro", para citarmos apenas alguns poucos títulos. Sem dúvida, enorme medida do reconhecimento entusiasmado desse conjunto extenso de poemas se deve à sua preocupação social, diante da modernidade capitalista, e à sua sensibilidade humanitária, frente à Segunda Guerra Mundial e aos regimes totalitários de então, um deles instalados aqui no Brasil, com a primeira presidência de Getúlio Vargas. Trocando em miúdos, A rosa do povo apresentava ao leitor um Carlos Drummond de Andrade nitidamente de esquerda, disposto a render-se à eufórica comemoração do cerco soviético à capital da Alemanha nazista, nas também famosas estrofes de "Com o russo em Berlim", as últimas das quais se seguem transcritas:
 
"Olha a esperança à frente dos exércitos,
olha a certeza. Nunca assim tão forte.
Nós que tanto esperamos, nós a temos
com o russo em Berlim.
 
Uma cidade existe poderosa
a conquistar. E não cairá tão cedo.
Colar de chamas forma-se a enlaçá-la,
com o russo em Berlim.
 
Uma cidade atroz, ventre metálico
pernas de escravos, boca de negócio,
ajuntamento estúpido, já treme
com o russo em Berlim.
 
Esta cidade oculta em mil cidades,
trabalhadores do mundo, reuni-vos
para esmagá-la, vós que penetrais
com o russo em Berlim."
 
Não sabia o grande poeta itabirano das atrocidades cometidas pelo Exército Vermelho na Alemanha, em nome dessa nunca assim tão forte esperança e dos trabalhadores do mundo reunidos. Talvez não imaginasse a cruel ambiguidade do verbo "penetrais" naquele contexto. Abaixo, o depoimento de uma alemã que, em 1945, tinha (para nós, brasileiros, hoje) emblemáticos 16 anos de idade:
 
"Contei, eram oito russos... E uma coisa eu digo, não gritei, não fiz nada, choraminguei, sim, porque eu, naquele tempo se ouvia que era estupro e depois um tiro na nuca, e eu tive um medo incrível. Sim, e o primeiro deles, ele me fez, rasgaram a roupa do meu corpo, e eu não tinha mais nada me cobrindo, nada... e o último, ele me teve, e eu gritei, mas depois não tinha mais lágrimas, e o último deles... e eu pensava, quantos ainda faltam, e eu pensava, quando isto acabar, de qualquer forma vão me dar um tiro na nuca."
 
O trecho se encontra no livro Alemanha, 1945, do professor Richard Bessel, que o comenta: "Esta, e não uma heroica luta final para inspirar futuras gerações, foi a experiência pela qual passaram dezenas de milhares de berlinenses no fim de abril de 1945". (São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.123)

 

terça-feira, 31 de maio de 2016

A heroicização do criminoso e a cultura da impunidade (não a do estupro)

Em aula de Psicologia da Educação de uma licenciatura em História, o professor nos relatava sua experiência com um aluno problemático de ensino fundamental. O menino, que teria testemunhado o assassinato dos próprios pais, abandonou os estudos, e, dali a pouco, tornou-se o traficante mais procurado pela polícia na região. O desfecho da narrativa se apresentou como uma chave de ouro: mas era ele o grande responsável pela segurança da escola, localizada próxima à favela em que morava e atuava.

Logo após ouvir o relato e diante da quase aclamação de muitos na sala de aula, assaltou-me, por assim dizer, uma vontade danada de intervir, e chamar a atenção para o fato de que estávamos ali enaltecendo ou, no mínimo, endossando as práticas de um criminoso que nada mais fazia do que proteger o seu território da concorrência. Bandido de alta periculosidade, o ex-aluno decerto vinha roubando e matando, e mandando que outros roubassem, matassem, além de, naturalmente, chefiar um esquema de tráfico de drogas a serem consumidas por adultos, por adolescentes, por crianças, por quem quer que fosse.

Preferi permanecer em silêncio, e não estragar a condecoração emocionada que o professor e os colegas celebravam. Dias depois, me convenci: essa tendência de lançar um olhar condescendente à criminalidade (motivado quem o faça pelo entendimento - mais de araque impossível - de que o criminoso é uma mera vítima do meio e da sociedade) não se restringe a países como o Brasil, onde os índices de violência são tão altos e preocupantes quanto as disparidades socioeconômicas. Um ótimo exemplo dessa disseminação romanticamente contagiante encontra-se no hollywoodianíssimo Homem-Formiga (2015), filme ao qual só vim a assistir no fim de semana passado.

Eis a cena emblemática: o jovem Scott Lang, um ex-detento recém-liberto, em meio às dificuldades em conseguir algum emprego, invade uma residência com o objetivo de arrombar um cofre, onde, para sua enorme decepção, apenas encontrará o traje que, mais adiante, fará dele o super-herói do filme. Isso porque, aos olhos do cientista responsável pela criação da tecnologia e pela divulgação das informações que conduzirão, de caso pensado, o personagem até ali, o protagonista só se revelará digno de ser o Homem-Formiga, na medida em que comprovar ser, de fato, um exímio... ladrão.

Na verdade, esse filme está muito longe da solidão em matéria de cinematografia que converte um inconteste vilão num personagem simpático, por vezes heroico, com o qual o espectador irresistivelmente acaba por se identificar. Mas tomemos um exemplo literário. A obra do nosso modernista Oswald de Andrade forneceu uma magnífica chave de compreensão crítica e criativa na proposta da antropofagia poética, a qual estimula apropriações paródicas do texto alheio, sem qualquer complexo de inferioridade ou de culpa frente a valores como o de originalidade, de influência etc. O "Manifesto antropófago", publicado em 1928, consiste na súmula desse princípio oswaldiano, em que o autor, a propósito, faz um mexidão estapafúrdio de Marx, Nietzsche e Freud. Sabemos que Nietzsche jamais estenderia a mão a Marx. É que o filósofo de Ecce homo foi sempre a voz nostálgica da aristocracia como governo dos melhores, dos mais fortes, e da distinção - politicamente incorreta par excellence - entre estes e a plebe, entre estes e os escravos. O Nietzsche zaratustriano prescrevia, como expressão perfeita da vontade de potência, o comportamento dos antigos nórdicos (a "besta loura"), que, numa invasão, assassinavam, estupravam, e voltavam para casa, cantarolando, rindo e festejando.

Ora, em seu famoso manifesto, Oswald reivindica uma "realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias". A ausência de penitenciárias aí significa uma coisa muito bonita - a liberdade total; obaaaaa! - e uma coisa bastante assustadora: se eu sou livre para fazer o que eu bem quiser, o outro também, para me espancar, me roubar, me discriminar, me matar, me estuprar... A ausência de prostíbulos não significaria, no fim das contas, uma liberdade sexual indiferente ao consentimento alheio?

E quando se misturam, num mesmo prato, pensamento libertário, tendência à heroicização e/ou à vitimização do criminoso e cultura da impunidade?

Infelizmente, o estupro coletivo ocorrido no Rio de Janeiro semana passada é apenas um que a imprensa trouxe a público, entre inúmeros não registrados, que ocorreram, ocorrem e ocorrerão no Brasil, e no mundo. Sim, sou daqueles assombrados pela convicção estatística de que neste exato momento em que sou lido alguém está sendo violentado - por um estranho, por um conhecido, por um parente.

Pensamento libertário, tendência à heroicização e/ou vitimização do criminoso e cultura da impunidade me parecem elementos pertinentes para pensarmos (inevitavelmente com horror) nesse episódio hediondo, ao passo que homem, mulher constituem, para mim, categorias irrelevantes. Lembro o tenebroso caso de Rosemary e Fred West. Na década de 90, esse casal inglês - um homem e uma mulher - sequestrou, torturou, estuprou e assassinou em série. As condições sociais igualmente não explicam nada. Refletindo sobre esses mesmos atos criminosos sucedidos na Inglaterra, em ensaio coligido no livro Nossa cultura ou o que restou dela, o psiquiatra britânico Theodore Dalrymple contesta a visão de pessoas pobres como "enredados por forças que não podem influenciar, muito menos controlar - e que, portanto, não podem assumir sua completa condição humana". (São Paulo: É Realizações, 2015. p.263) Além do mais:

"[...] ambos [Fred e Rosemary] eram provenientes de famílias grandes e pobres, nas quais a violência doméstica era um lugar-comum. Mas nenhum de seus irmãos e irmãs jamais se aproximou do nível de ferocidade e crueldade de Fred e Rose, mesmo quando se verificou que alguns dos irmãos de Rose tinham cometido pequeno delitos. Fred foi criado num casebre rural sem eletricidade; aos nove anos já era obrigado a abater animais. No entanto, seus irmãos foram criados em condições semelhantes, só que eles não resolveram abater seres humanos." (São Paulo: É Realizações, 2015. p.318)

É... entre o Super-homem de Nietzsche e o Super-homem da DC Comics, prefiro ser salvo pelo que traz nos trajes as cores da bandeira dos Estados Unidos.



sexta-feira, 27 de maio de 2016

É goooooolllll? Ou é gooooollllpe?

Um humorista teve a hilária e brilhante ideia de noticiar acontecimentos sobretudo relacionados com a Operação Lava Jato (o certo é "Lava a Jato", não?), como se estivesse narrando um jogo de futebol na rádio. Ficou perfeito, e por isso mesmo muito engraçado, o encaixe da dinâmica esportiva na dinâmica política, jurídica e policial que tem praticamente monopolizado as atenções da imprensa brasileira. A sacada merece mais do que risos; merece também aplausos, por ter captado um fenômeno não inédito, nem recente, tampouco incomum no Brasil, mas que tomou uma evidência assombrosa nestes últimos anos: a futebolização da política.

De um lado, a torcida uniformizada de verde e amarelo (é jogo da Seleção Brasileira?). Do outro lado, a torcida uniformizada de vermelho (é jogo do Internacional? ou da Internacional?). O plenário do Senado aprova o afastamento da presidente da República, um lado grita e solta fogos de artifício. O ministro do Planejamento cai, o outro lado comemora como um cartão rubro de felicidade que expulsa um jogador do time adversário. Teori Zavascki retira de Curitiba as investigações a respeito de ex-presidente, um lado entoa "juiz ladrão, porrada é solução". Teori Zavascki determina acréscimo de documentação que incrementa denúncia contra o mesmo ex-presidente, o outro lado repete o lisonjeiro e ponderado dístico.

No entanto, apesar dos inegáveis riscos e preocupantes indícios que essa maneira de se participar e de se pensar a política acarreta, a futebolização da política não consiste num mal em si. A depender do seu aproveitamento - infelizmente, improvável -, o fenômeno se revelaria uma caixinha de surpresas de onde se poderia tirar algumas boas lições. Pois mesmo um cruzeirense fanático, um flamenguista doente, um corintiano sofredor e um atleticano atleticano não poupam críticas a seus respectivos times, se estes jogam mal ou realizam uma campanha pífia. Os torcedores têm, sim, seus ídolos, heróis de notórios feitos que marcam a história de um clube. Mas não há craque que sobreviva a uma má fase sem se tornar alvo da contrariedade e da impaciência dos que vão aos estádios, vestidos das cores do clube.

A futebolização da política também poderia nos ensinar que o amor ao time não supera, pela lógica, pela coerência jamais superará, em grandeza, o amor ao futebol. Nesse caso, não há sequer farelo de dilema em relação a quem cabe a antecedência, se ao ovo (o time), se à galinha (o esporte). Sendo assim, a adesão ao partido não deveria nunca superar, em grandeza, o interesse no funcionamento democrático da política e no que for considerado melhor para o País. Trata-se do velho tema de reconhecer a importância da existência do outro. Nenhum time pode jogar a não ser contra algum adversário, eis a essência de qualquer esporte. Ademais, o que seria da história do Atlético Paranaense sem o Paraná? do Fortaleza sem o Ceará? do Bahia sem o Vitória?

Contudo, o cidadão e eleitor brasileiro teima em preferir aprender, para aplicá-las à política, as piores lições futebolísticas. Comemorando a vitória decorrida de um pênalti mal marcado, de um gol impedido. Vibrando com as várias opções de injustiça que enfeiam o esporte, mas que, uma vez e outra, favorecem o clube para o qual torce. O futebol malandro, pós-graduado em jeitinho, é o modelo da nossa política malandra. E como se não bastasse, a incompetência e a má administração também já se estabeleceram, há muito, como modelo para a política do elefante geográfico de chuteiras que é o Brasil.



 

quarta-feira, 18 de maio de 2016

O que vale a opinião de um artista?

Sim, o que vale a opinião de um artista?

Já faz muitos anos, um grande amigo, caricaturista primoroso (no desenho e nas palavras), brincou que o Faustão é tão hipócrita e tão demagogo que seria bem capaz de anunciar assim, no seu programa dominical, certa famosa figura do passado:

" - E agora, ele, que tem dignidade, é politizado, é o filho da dona Klara e do seu Alois... Adoooooolllfffff... Hiiiiiiiiitleeeeeeeeerrrr... Ô louco meu, mais de 6 milhões de judeus assassinados... brincadeira!"

Os brasileiros temos de rever nossas crenças de índole faustônica. Nem a fama, nem a arte, nem mesmo a genialidade artística fazem de alguém, necessariamente, um sábio para além das fronteiras do seu ofício. E mais: nem a fama, nem a arte, nem mesmo a genialidade artística certificam lisura de comportamento ou dão indícios de santidade.

Beethoven, por exemplo. O maior compositor da história da música, o autor da mais sublime das obras humanas, sua Nona sinfonia, era um grosseirão de marca maior, que se proclamava republicano, mas sua excelente Sétima sinfonia - especialmente escrita para a ocasião - integrou o repertório musical do Congresso de Viena, evento contrarrevolucionário em que as cabeças coroadas europeias reorganizaram a geopolítica monárquica do Velho Continente. E Richard Wagner? Outro monstro da música erudita, monstro também da canalhice, o antissemitismo era apenas um de seus atributos intragáveis.

Hoje atores brasileiros protestaram, em Cannes, contra o afastamento de Dilma Rousseff da presidência da República e contra o processo de impeachment em curso. Estão certos. Expressam uma opinião (com a qual não concordo). Mas se essa opinião se fundamentar apenas em serem artistas, atores, famosos - ela vale tanto quanto a contida nos berros do Faustão, para alardear a politização, a dignidade e o quem sabe faz ao vivo de todos os demais convidados ao seu programa.

Alfred Hitchcock, o esplêndido diretor de cinema, que tanto conhecia "seu gado", ironizou certa vez: "todos os atores são... gado". Em entrevista a Truffaut, o cineasta de Psicose esclareceu que sua "observação era apenas uma generalização" (in Hitchcock Truffaut. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p.140) Tudo bem: se nem todos são gado, nem todos os atores são intelectuais, evangelistas da boa nova política. Assim como nem todos os músicos, compositores, pintores, escritores, jornalistas...

Pois a validade e a força persuasiva de uma opinião não devem ser observadas na pessoa, seja ela quem for, mas nos fundamentos argumentativos e na linha de raciocínio da opinião emitida.

Aí o leitor me provoca: e o que vale a opinião de um professor? Vale a pena responder? Haja demagogia e hipocrisia do Faustão para nos exaltar.


  

terça-feira, 17 de maio de 2016

Positivismo em pauta

Críticas de primeira hora à ausência de mulheres e de negros no ministério do governo Temer vêm sendo acompanhadas, em postagens no Facebook, de birras com o alegado positivismo do logo e do lema escolhidos para simbolizar as novas diretrizes do executivo federal em exercício.

Ora, ora... trata-se de uma óbvia citação, mas também de um necessário resgate do significado da Bandeira brasileira. O gesto sinaliza rejeição (que bom!) à vermelhidão, à foice e ao martelo que imperam nas manifestações em favor da administração petista e da democracia (democracia só se for no sentido soviético, cubano, venezuelano, congolês, chinês e norte-coreano da palavra, tão enxovalhada nestes dias). O gesto ratifica os símbolos da nação, metendo o dedo numa das nossas feridas mais abertas - porque a corrupção chegou a tal ponto, petrolão, desabamento de barragens e ciclovias, que precisamos de "ordem". E ratifica os símbolos da nação, prometendo "progresso" - porque precisamos retomar o crescimento econômico e dispersar a marcha da inflação, do desemprego, da desconfiança dos investidores internacionais sobre o País.

[Recomendo a leitura de A formação das almas: o imaginário da república no Brasil, de José Murilo de Carvalho; especialmente do capítulo cinco, intitulado "Bandeira e hino: o peso da tradição".]



O incômodo com a ratificação do lema "ordem e progresso" advém, naturalmente, da tão comum visão negativa e um tantinho caricata do positivismo, do qual adeptos e simpáticos adotavam como palavras-síntese da doutrina "O Amor por princípio, e a Ordem por base; o Progresso por fim", ou também "Viver para outrem; Viver às claras; Ordem e Progresso".

Está claro que o próprio positivismo, já no século retrasado, descambou para uma caricatura de si mesmo, com a incorporação de elementos religiosos católicos na doutrina. Esse mix de filosofia-religião, formulado pelo fundador Auguste Comte, tomou concretude na Igreja Positivista do Brasil, com sede no Rio de Janeiro, à rua Benjamin Constant, número 74. Entre seus mais notórios sacerdotes figuraram Teixeira Mendes e Miguel Lemos. A propósito, o caráter ritualístico dessa fé-losofia (o terrível trocadilho é de minha responsabilidade) tornou-se objeto de saborosa sátira no humanitismo de Quincas Borba, personagem de dois romances de Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba.

Contudo, apenas o cinismo - nu e cru - chancelará o ridicularizar-se o ideal de amor à humanidade e a apologia, aí embutida, da tolerância e, mais, da compaixão no "Viver para outrem"; o ideal de amor à virtude e a apologia, aí embutida, da sinceridade e, mais, da honestidade no "Viver às claras"; o ideal de amor à razão e a apologia, aí embutida, das ciências e, mais, das melhorias de vida no "Ordem e Progresso". Afinal, não há política nacional digna do nome, que não almeje estabelecer uma ordem, para produzir um progresso - fato que atestam governos tanto de "direita" (Estados Unidos) quanto de "esquerda" (Cuba).

Em artigo publicado na Folha de São Paulo a 17 de janeiro de 1982, José Guilherme Merquior (entre outras coisas várias, sociólogo) assinalava em documentos assinados por Mendes e Lemos o "altíssimo valor, como análise objetiva da sociedade do fim do Império e da Primeira República e como proposta esclarecida de reformas sociais". (in O argumento liberal, 1983, p.245) E confessava logo adiante:

"Cada vez mais me convenço de que a avaliação isenta do positivismo brasileiro foi vítima de três intolerâncias sucessivas: a do catolicismo reacionário, há cinquenta ou quarenta anos; a do marxismo, da guerra para cá; e, ultimamente, a de certos 'culturalismos' que, a pretexto de anticientificismo, rejeitam arbitrariamente o racionalismo e se esforçam por caluniar a modernidade e destruir o conceito positivo de progresso." (in O argumento liberal, 1983, p.245)

Tempos dificílimos, hein, Michel Temer - em que o excelentíssimo estará errado por ter cachorro, e errado por não ter cadela, e vice-versa.