terça-feira, 17 de maio de 2016

Positivismo em pauta

Críticas de primeira hora à ausência de mulheres e de negros no ministério do governo Temer vêm sendo acompanhadas, em postagens no Facebook, de birras com o alegado positivismo do logo e do lema escolhidos para simbolizar as novas diretrizes do executivo federal em exercício.

Ora, ora... trata-se de uma óbvia citação, mas também de um necessário resgate do significado da Bandeira brasileira. O gesto sinaliza rejeição (que bom!) à vermelhidão, à foice e ao martelo que imperam nas manifestações em favor da administração petista e da democracia (democracia só se for no sentido soviético, cubano, venezuelano, congolês, chinês e norte-coreano da palavra, tão enxovalhada nestes dias). O gesto ratifica os símbolos da nação, metendo o dedo numa das nossas feridas mais abertas - porque a corrupção chegou a tal ponto, petrolão, desabamento de barragens e ciclovias, que precisamos de "ordem". E ratifica os símbolos da nação, prometendo "progresso" - porque precisamos retomar o crescimento econômico e dispersar a marcha da inflação, do desemprego, da desconfiança dos investidores internacionais sobre o País.

[Recomendo a leitura de A formação das almas: o imaginário da república no Brasil, de José Murilo de Carvalho; especialmente do capítulo cinco, intitulado "Bandeira e hino: o peso da tradição".]



O incômodo com a ratificação do lema "ordem e progresso" advém, naturalmente, da tão comum visão negativa e um tantinho caricata do positivismo, do qual adeptos e simpáticos adotavam como palavras-síntese da doutrina "O Amor por princípio, e a Ordem por base; o Progresso por fim", ou também "Viver para outrem; Viver às claras; Ordem e Progresso".

Está claro que o próprio positivismo, já no século retrasado, descambou para uma caricatura de si mesmo, com a incorporação de elementos religiosos católicos na doutrina. Esse mix de filosofia-religião, formulado pelo fundador Auguste Comte, tomou concretude na Igreja Positivista do Brasil, com sede no Rio de Janeiro, à rua Benjamin Constant, número 74. Entre seus mais notórios sacerdotes figuraram Teixeira Mendes e Miguel Lemos. A propósito, o caráter ritualístico dessa fé-losofia (o terrível trocadilho é de minha responsabilidade) tornou-se objeto de saborosa sátira no humanitismo de Quincas Borba, personagem de dois romances de Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba.

Contudo, apenas o cinismo - nu e cru - chancelará o ridicularizar-se o ideal de amor à humanidade e a apologia, aí embutida, da tolerância e, mais, da compaixão no "Viver para outrem"; o ideal de amor à virtude e a apologia, aí embutida, da sinceridade e, mais, da honestidade no "Viver às claras"; o ideal de amor à razão e a apologia, aí embutida, das ciências e, mais, das melhorias de vida no "Ordem e Progresso". Afinal, não há política nacional digna do nome, que não almeje estabelecer uma ordem, para produzir um progresso - fato que atestam governos tanto de "direita" (Estados Unidos) quanto de "esquerda" (Cuba).

Em artigo publicado na Folha de São Paulo a 17 de janeiro de 1982, José Guilherme Merquior (entre outras coisas várias, sociólogo) assinalava em documentos assinados por Mendes e Lemos o "altíssimo valor, como análise objetiva da sociedade do fim do Império e da Primeira República e como proposta esclarecida de reformas sociais". (in O argumento liberal, 1983, p.245) E confessava logo adiante:

"Cada vez mais me convenço de que a avaliação isenta do positivismo brasileiro foi vítima de três intolerâncias sucessivas: a do catolicismo reacionário, há cinquenta ou quarenta anos; a do marxismo, da guerra para cá; e, ultimamente, a de certos 'culturalismos' que, a pretexto de anticientificismo, rejeitam arbitrariamente o racionalismo e se esforçam por caluniar a modernidade e destruir o conceito positivo de progresso." (in O argumento liberal, 1983, p.245)

Tempos dificílimos, hein, Michel Temer - em que o excelentíssimo estará errado por ter cachorro, e errado por não ter cadela, e vice-versa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário