terça-feira, 31 de maio de 2016

A heroicização do criminoso e a cultura da impunidade (não a do estupro)

Em aula de Psicologia da Educação de uma licenciatura em História, o professor nos relatava sua experiência com um aluno problemático de ensino fundamental. O menino, que teria testemunhado o assassinato dos próprios pais, abandonou os estudos, e, dali a pouco, tornou-se o traficante mais procurado pela polícia na região. O desfecho da narrativa se apresentou como uma chave de ouro: mas era ele o grande responsável pela segurança da escola, localizada próxima à favela em que morava e atuava.

Logo após ouvir o relato e diante da quase aclamação de muitos na sala de aula, assaltou-me, por assim dizer, uma vontade danada de intervir, e chamar a atenção para o fato de que estávamos ali enaltecendo ou, no mínimo, endossando as práticas de um criminoso que nada mais fazia do que proteger o seu território da concorrência. Bandido de alta periculosidade, o ex-aluno decerto vinha roubando e matando, e mandando que outros roubassem, matassem, além de, naturalmente, chefiar um esquema de tráfico de drogas a serem consumidas por adultos, por adolescentes, por crianças, por quem quer que fosse.

Preferi permanecer em silêncio, e não estragar a condecoração emocionada que o professor e os colegas celebravam. Dias depois, me convenci: essa tendência de lançar um olhar condescendente à criminalidade (motivado quem o faça pelo entendimento - mais de araque impossível - de que o criminoso é uma mera vítima do meio e da sociedade) não se restringe a países como o Brasil, onde os índices de violência são tão altos e preocupantes quanto as disparidades socioeconômicas. Um ótimo exemplo dessa disseminação romanticamente contagiante encontra-se no hollywoodianíssimo Homem-Formiga (2015), filme ao qual só vim a assistir no fim de semana passado.

Eis a cena emblemática: o jovem Scott Lang, um ex-detento recém-liberto, em meio às dificuldades em conseguir algum emprego, invade uma residência com o objetivo de arrombar um cofre, onde, para sua enorme decepção, apenas encontrará o traje que, mais adiante, fará dele o super-herói do filme. Isso porque, aos olhos do cientista responsável pela criação da tecnologia e pela divulgação das informações que conduzirão, de caso pensado, o personagem até ali, o protagonista só se revelará digno de ser o Homem-Formiga, na medida em que comprovar ser, de fato, um exímio... ladrão.

Na verdade, esse filme está muito longe da solidão em matéria de cinematografia que converte um inconteste vilão num personagem simpático, por vezes heroico, com o qual o espectador irresistivelmente acaba por se identificar. Mas tomemos um exemplo literário. A obra do nosso modernista Oswald de Andrade forneceu uma magnífica chave de compreensão crítica e criativa na proposta da antropofagia poética, a qual estimula apropriações paródicas do texto alheio, sem qualquer complexo de inferioridade ou de culpa frente a valores como o de originalidade, de influência etc. O "Manifesto antropófago", publicado em 1928, consiste na súmula desse princípio oswaldiano, em que o autor, a propósito, faz um mexidão estapafúrdio de Marx, Nietzsche e Freud. Sabemos que Nietzsche jamais estenderia a mão a Marx. É que o filósofo de Ecce homo foi sempre a voz nostálgica da aristocracia como governo dos melhores, dos mais fortes, e da distinção - politicamente incorreta par excellence - entre estes e a plebe, entre estes e os escravos. O Nietzsche zaratustriano prescrevia, como expressão perfeita da vontade de potência, o comportamento dos antigos nórdicos (a "besta loura"), que, numa invasão, assassinavam, estupravam, e voltavam para casa, cantarolando, rindo e festejando.

Ora, em seu famoso manifesto, Oswald reivindica uma "realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias". A ausência de penitenciárias aí significa uma coisa muito bonita - a liberdade total; obaaaaa! - e uma coisa bastante assustadora: se eu sou livre para fazer o que eu bem quiser, o outro também, para me espancar, me roubar, me discriminar, me matar, me estuprar... A ausência de prostíbulos não significaria, no fim das contas, uma liberdade sexual indiferente ao consentimento alheio?

E quando se misturam, num mesmo prato, pensamento libertário, tendência à heroicização e/ou à vitimização do criminoso e cultura da impunidade?

Infelizmente, o estupro coletivo ocorrido no Rio de Janeiro semana passada é apenas um que a imprensa trouxe a público, entre inúmeros não registrados, que ocorreram, ocorrem e ocorrerão no Brasil, e no mundo. Sim, sou daqueles assombrados pela convicção estatística de que neste exato momento em que sou lido alguém está sendo violentado - por um estranho, por um conhecido, por um parente.

Pensamento libertário, tendência à heroicização e/ou vitimização do criminoso e cultura da impunidade me parecem elementos pertinentes para pensarmos (inevitavelmente com horror) nesse episódio hediondo, ao passo que homem, mulher constituem, para mim, categorias irrelevantes. Lembro o tenebroso caso de Rosemary e Fred West. Na década de 90, esse casal inglês - um homem e uma mulher - sequestrou, torturou, estuprou e assassinou em série. As condições sociais igualmente não explicam nada. Refletindo sobre esses mesmos atos criminosos sucedidos na Inglaterra, em ensaio coligido no livro Nossa cultura ou o que restou dela, o psiquiatra britânico Theodore Dalrymple contesta a visão de pessoas pobres como "enredados por forças que não podem influenciar, muito menos controlar - e que, portanto, não podem assumir sua completa condição humana". (São Paulo: É Realizações, 2015. p.263) Além do mais:

"[...] ambos [Fred e Rosemary] eram provenientes de famílias grandes e pobres, nas quais a violência doméstica era um lugar-comum. Mas nenhum de seus irmãos e irmãs jamais se aproximou do nível de ferocidade e crueldade de Fred e Rose, mesmo quando se verificou que alguns dos irmãos de Rose tinham cometido pequeno delitos. Fred foi criado num casebre rural sem eletricidade; aos nove anos já era obrigado a abater animais. No entanto, seus irmãos foram criados em condições semelhantes, só que eles não resolveram abater seres humanos." (São Paulo: É Realizações, 2015. p.318)

É... entre o Super-homem de Nietzsche e o Super-homem da DC Comics, prefiro ser salvo pelo que traz nos trajes as cores da bandeira dos Estados Unidos.



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