sábado, 4 de junho de 2016

Mulheres com o russo em Berlim

Para muitos, A rosa do povo, publicado em 1945 em tiragem quase clandestina, é o livro maior de um poeta maior. De fato, no volume constam os antológicos "Procura da poesia", "A flor e a náusea", "Áporo", "Edifício São Borja", "Caso do vestido", "Morte do leiteiro", para citarmos apenas alguns poucos títulos. Sem dúvida, enorme medida do reconhecimento entusiasmado desse conjunto extenso de poemas se deve à sua preocupação social, diante da modernidade capitalista, e à sua sensibilidade humanitária, frente à Segunda Guerra Mundial e aos regimes totalitários de então, um deles instalados aqui no Brasil, com a primeira presidência de Getúlio Vargas. Trocando em miúdos, A rosa do povo apresentava ao leitor um Carlos Drummond de Andrade nitidamente de esquerda, disposto a render-se à eufórica comemoração do cerco soviético à capital da Alemanha nazista, nas também famosas estrofes de "Com o russo em Berlim", as últimas das quais se seguem transcritas:
 
"Olha a esperança à frente dos exércitos,
olha a certeza. Nunca assim tão forte.
Nós que tanto esperamos, nós a temos
com o russo em Berlim.
 
Uma cidade existe poderosa
a conquistar. E não cairá tão cedo.
Colar de chamas forma-se a enlaçá-la,
com o russo em Berlim.
 
Uma cidade atroz, ventre metálico
pernas de escravos, boca de negócio,
ajuntamento estúpido, já treme
com o russo em Berlim.
 
Esta cidade oculta em mil cidades,
trabalhadores do mundo, reuni-vos
para esmagá-la, vós que penetrais
com o russo em Berlim."
 
Não sabia o grande poeta itabirano das atrocidades cometidas pelo Exército Vermelho na Alemanha, em nome dessa nunca assim tão forte esperança e dos trabalhadores do mundo reunidos. Talvez não imaginasse a cruel ambiguidade do verbo "penetrais" naquele contexto. Abaixo, o depoimento de uma alemã que, em 1945, tinha (para nós, brasileiros, hoje) emblemáticos 16 anos de idade:
 
"Contei, eram oito russos... E uma coisa eu digo, não gritei, não fiz nada, choraminguei, sim, porque eu, naquele tempo se ouvia que era estupro e depois um tiro na nuca, e eu tive um medo incrível. Sim, e o primeiro deles, ele me fez, rasgaram a roupa do meu corpo, e eu não tinha mais nada me cobrindo, nada... e o último, ele me teve, e eu gritei, mas depois não tinha mais lágrimas, e o último deles... e eu pensava, quantos ainda faltam, e eu pensava, quando isto acabar, de qualquer forma vão me dar um tiro na nuca."
 
O trecho se encontra no livro Alemanha, 1945, do professor Richard Bessel, que o comenta: "Esta, e não uma heroica luta final para inspirar futuras gerações, foi a experiência pela qual passaram dezenas de milhares de berlinenses no fim de abril de 1945". (São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.123)

 

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