sábado, 18 de junho de 2016

Revolução, conservadorismo e Fernando Pessoa

Ao acusá-lo Lucas Mendes de defender opinião inversa à que havia emitido na semana anterior do programa Manhattan Connection, nosso saudoso Paulo Francis (1930-1997) irrompeu com contestação de ironia arrasadora, que vale uma máxima: "Toda pessoa inteligente é contraditória; só os burros não se contradizem." A frase - célebre como outras tantas do jornalista que se alçou à condição de personagem de si mesmo - ensina o que o poeta português Fernando Pessoa - o imperador da heteronímia e, por conseguinte, professor da multiplicidade ideológica - também ensinou: que o verdadeiro intelectual acorda republicano e vai dormir monarquista.

São dois bons antídotos para estes tempos de polarização política (coxinhas vs mortandelas) recrudescida como intolerância à opinião diversa. Mas se Paulo Francis soa repulsivo aos ouvidos de quem o tem por reacionário, de direita, conservador, soldado do liberalismo (termos considerados palavrões), o nome de Fernando Pessoa não incomodaria nada numa prescrição médica para o mal-estar das ideias. Será por quê? Afinal de contas, o mesmo autor que inflama a fé cristã nos belos versos "Cheio de Deus, não temo o que virá, / Pois, venha o que vier, nunca será / maior do que a minha alma", em Mensagem, nos convence de que Deus não passa de "um velho estúpido e doente, / Sempre a escarrar no chão / E a dizer indecências", nos versos contundentes atribuídos a Alberto Caeiro. E o mesmo poeta queridinho de tantos autointitulados revolucionários foi quem, no ótimo conto "O banqueiro anarquista", revelou pela voz clarividente de um personagem que:

"Um regime revolucionário, enquanto existe, e seja qual for o fim a que visa ou a ideia que o conduz, é materialmente só uma coisa - um regime revolucionário. Ora, um regime revolucionário quer dizer uma ditadura de guerra, ou, nas verdadeiras palavras, um regime militar despótico, porque o estado de guerra é imposto à sociedade por uma parte dela - aquela parte que assumiu revolucionariamente o poder. O que é que resulta? Resulta que quem se adaptar a esse regime, como a única coisa que ele é materialmente, imediatamente, é um regime militar despótico, adapta-se a um regime militar despótico. A ideia, que conduziu os revolucionários, o fim, a que visavam, desapareceu por completo da realidade social, que é ocupada exclusivamente pelo fenômeno guerreiro. De modo que o que sai de uma ditadura revolucionária - e tanto mais completamente sairá, quanto mais tempo essa ditadura durar - é uma sociedade guerreira do tipo ditatorial, isto é, um despotismo militar. Nem mesmo podia ser outra coisa. E foi sempre assim. Eu não sei muita história, mas o que sei acerta com isto; nem podia deixar de acertar. O que saiu das agitações políticas de Roma? O império Romano e seu despotismo militar. O que saiu da Revolução Francesa? Napoleão e seu despotismo militar. E você verá o que saiu da Revolução Russa. Qualquer coisa que vai atrasar dezenas de anos a realização da sociedade livre... Também o que era de se esperar de um povo de analfabetos e de místicos?..."

E ainda o mesmo poeta queridinho de tantos autointitulados revolucionários foi quem concedeu ao semi-heterônimo Bernardo Soares a autoria destas linhas de O livro do desassossego:

"Todo o dia, em toda a sua desolação de nuvens leves e mornas, foi ocupado pelas informações de que havia revolução. Estas notícias, falsas ou certas, enchem-me de um desconforto especial, misto de desdém e de náusea física. Dói-me na inteligência que alguém julgue que altera alguma coisa agitando-se. A violência, seja qual for, foi sempre para mim uma forma esbugalhada de estupidez humana. Depois, todos os revolucionários são estúpidos, como, em grau menor, porque menos incômodo, o são todos os reformadores.

"Revolucionário ou reformador - o erro é o mesmo. Impotente para dominar e reformar a própria atitude para com a vida, que é tudo, ou o seu próprio ser, que é quase tudo, o homem foge para querer modificar os outros e o mundo externo. Todo o revolucionário, todo o reformador, é um evadido. Combater é não ser capaz de combater-se. Reformar é não ter emenda possível."

Como se vê, para titio Pessoa, havia pelo menos um mínimo (mais do que isso, né?) de dignidade semântica e ideológica nas palavras "reacionário", "conservador", "de direita", e por que não acrescentar, "liberal".

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