quinta-feira, 1 de setembro de 2016

De diretores de consciência e pedofilia

Ai do professor universitário que ousar, em texto publicado, decretar que boa literatura não é isso, que boa literatura só pode ser aquilo. Seus pares, caso o leiam ou tomem conhecimento de sua atitude, hão de recriminá-lo, acusando-o, no mais suave dos termos: "Seu diretor de consciência!"

Dificilmente, porém, vamos nos deparar hoje com um artigo ou qualquer trabalho acadêmico dessa espécie. Não por motivos de uma glória maior da harmonia intelectual brasileira, mas por um quase consenso de que já não se sustenta universalmente nenhuma verdade última - talvez nem primeira - referente às artes em geral. O artista e sua obra existem, em nossos dias, acima de tudo como individualidades.

Nessas condições, grandes críticos literários do passado ainda não se livraram da pecha de diretores de consciência. Álvaro Lins, Alceu Amoroso Lima, Mário Faustino e outros nomes fortes da nossa crítica em meados do século XX teriam sido autoritários, ao presunçosamente aprovarem ou reprovarem um escritor ou um livro. Quem eles pensavam que eram, na decisão elitista de que esse era bom, aquele nem tanto e um outro indigno de publicação? O leitor comum não seria capaz, por si só, desse discernimento? Não seria capaz de formular uma opinião própria? E o gosto pessoal - onde ficaria?

Apesar dos pesares, estou com José Guilherme Merquior, quem teimou, no decorrer das décadas de 60, 70 e 80, em resgatar o caráter judicativo da crítica literária, e nessa postura atacou a geração de 45 dos poetas brasileiros, para enaltecer João Cabral de Melo Neto, e apontou os males do pós-estruturalismo, para iluminar os benefícios do pensamento liberal. Naturalmente, caberia ao leitor concordar ou não. Nessa disposição - democrática, por excelência - de considerar a opinião alheia e diferente é que Merquior se tornou um dos protagonistas na história da polêmica brasileira.

Qualquer texto que se preze objetiva convencer, persuadir. De preferência, munido de toda a competência e instrumentos argumentativos do autor. Não fosse assim, haveria razão de falar e de escrever publicamente? Donde a permanência, legítima por sinal, dos chamados formadores de opinião. Uns não gostam de ler e ouvir o que pensa sobre certo assunto Arnaldo Jabor? Marilena Chauí? Diogo Mainardi? João Pereira Coutinho? Luiz Felipe Pondé e Leandro Karnal?

Mas o formador de opinião, o intelectual deve reconhecer, assim como o Estado, certos limites para suas intervenções. O respeito às diferenças de várias ordens (geopolíticas, ideológicas, étnicas, culturais, sexuais, identitárias, socioeconômicas) constitui uma cláusula do pensamento democrático e liberal contemporâneo, que, no entanto, não pode significar de jeito nenhum a liberdade de envolver a bel-prazer, na esfera do ser e do agir individuais, um outro indivíduo. Sobretudo quando se trata de um outro indivíduo considerado, perante os costumes e valores sociais e a lei, alguém incapaz de responder plenamente pelos próprios atos e decisões.

Por que toco nesse assunto? O motivo contextual específico reside no capítulo "Cinema e gênero", assinado pelo professor universitário Denilson Lopes, texto contido no livro História mundial do cinema, organizado por Fernando Mascarello, em sua 7a edição de 2012 pela Papirus; eis o trecho mais importante:

"Talvez num futuro, que espero próximo, haja um tempo em que falar de pedofilia seja apenas falar de uma expressão afetiva, tão impura e divina, violenta e intensa, terna e animal, como outra qualquer, apenas parte do que, na falta de uma palavra melhor, ainda chamamos de condição humana." (p.392)

Consulte o leitor o significado de pedofilia e o de criança. Acresce que a íntegra do capítulo não menciona qualquer parâmetro etário. Pedofilia é pedofilia. E tire suas próprias conclusões a respeito do trecho. A universidade costuma enxergar os velhos críticos literários como arrogantes e autoritários diretores de consciência. Mas não teríamos substituído uma arrogância e um autoritarismo por outros, o do "qualquer coisa serve", o do anything goes, na língua de Theodore Dalrymple?




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